Wagner Cardoso Jardim[1]
Quando do início da Primeira Guerra Mundial (1914-18), os dirigentes dos principais partidos social democratas europeus aliaram-se às burguesias dos seus respectivos países, aprovando, no Parlamento, os créditos de guerra solicitados pelos governos nacionais. Tal posição representou profundo golpe no proletariado mundial, em geral, e no proletariado europeu, em particular. Em 2020, na grave crise sanitária vivida no mundo, por conta do novo Corona Vírus, as burguesias nacionais de diversos países - não raro, representantes do capital internacional - têm aproveitado esse estado calamitoso para exigir dos governos a manutenção de seus polpudos lucros. Nesse particular, no Brasil, a esquerda social democrata, com representação parlamentar, tem dado total apoio a essa verdadeira farra com dinheiro público, em aportes bilionários aos bancos, enquanto os/as trabalhadores/as são demitidos ou têm os salários drasticamente cortados e, nos hospitais, a população pobre morre antes mesmo de ser atendida.
O período que vai do final do século 19 até o início da segunda década do século 20, viu se agudizar as rivalidades entre as principais potências imperialistas europeias. Era o auge das disputas por controle e submissão de territórios e povos, sobretudo nos continentes africano e asiático. O desenvolvimento do Capitalismo monopolista criou, por um lado, condições para a superexploração do mundo não industrializado e, por outro, assentou as bases materiais objetivas para, em especial, nos países avançados, evoluírem as condições subjetivas para a insurreição do Mundo do Trabalho. Naquele então, o Partido Social Democrata, constituído em vários países da Europa, agrupava diversas correntes marxistas, entre elas, os socialistas, mas estava hegemonizado pela vertente reformista, antirrevolucionária. Mesmo assim, o partido era o principal órgão de representação mundo operário, capaz de organizar à luta imediata contra a opressão do Capital e, no plano da estratégia maior, conduzir a Revolução Socialista que amadurecia.
Em julho de 1914, apesar do esforço de setores revolucionários para estimular greves gerais contra o conflito que se avizinhava, a guerra irrompeu. Havia, no entanto, esperança de que os partidos social democratas, radicalizassem, em seus países, a luta de classes, fomentando a agitação social, as greves e as insurreições contra os governos imperialistas. Esperava-se a resolução da equação: Guerra é igual a Revolução. O que se viu foi justamente o oposto. As direções dos principais partidos social democratas da Europa, entre eles o da Alemanha – de grande importância simbólica e tática no continente – e o da França, exigiram que os seus parlamentares votassem a favor dos créditos de guerra, em aliança com a burguesia.
No outro extremo, o Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), liderado por Vladimir Lenin, se opôs frontalmente àquele conflito. Lenin, ao ler nos jornais sobre o apoio social democrata à guerra, teria resistido em acreditar. Para o futuro líder da Revolução Russa, qualquer apoio, de órgão de representação do operariado, à burguesia imperialista que resultasse em conflito generalizado, levando os trabalhadores a se matarem mutuamente em lados opostos, enquanto deveriam lutar lado à lado contra o verdadeiro inimigo, o de classe, era verdadeiro absurdo. Aquela trágica realidade faria o revolucionário russo debruçar-se sobre o estudo do capitalismo monopolista, do qual resultara em uma de suas mais importantes obras: “Imperialismo, fase superior do Capitalismo”, publicada em abril de 1917.
O apoio explícito às burguesias nacionais, ferira de morte a essência dos partidos de inspiração social democrata, até então de viés aparentemente revolucionário. Rupturas, no seio daquelas organizações, opuseram visões de mundo de marxistas verdadeiramente revolucionários a de aproveitadores reformistas. Alguns camaradas pagariam com a própria vida a ousadia revolucionária de se contrapor às ordens do partido: Karl Liebknecht, então deputado, na Alemanha e Rosa de Luxemburgo, destacada militante e intelectual social democrata, foram assassinados por oficiais militares alemães, com anuência do partido, em janeiro de 1919. Rosa de Luxemburgo definiu aquele conflito como “volta à barbárie”. Da cisão no seio da social democracia surgiram – no contexto da III Internacional – boa parte dos partidos comunistas atualmente existentes, em quase todos os países e, que foram, em geral, responsáveis pelas Revoluções Socialistas, do século 20.
Em 2016, a ditadura do Capital conheceu salto de qualidade em seu desenvolvimento no Brasil. Naquele ano, um Golpe de Estado culminou com o impedimento da então presidenta Dilma Rousseff (PT) e levou o golpista Michel Temer à presidência. Em 2018, no auge no golpismo, fraudulenta eleição conduziu Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto, instaurando um governo civil, mas tutelado pelo Exército. Bolsonaro não era, de longe, o candidato dos sonhos do grande capital financeiros, mesmo ele tendo deixado explícito, em especial com a indicação de Paulo Guedes ao Ministério da Economia, que a pauta neoliberal era prioridade do seu futuro governo. Assim foi. Eleito, o ex-capitão do Exército aprofundou o desmonte do Estado brasileiro, iniciado por Michel Temer. Passado um ano de governo, Bolsonaro perdeu quase todo o apoio de massas que tinha, amparando-se quase exclusivamente em setores radicais das forças armadas e das igrejas evangélicas.
Desde então, a oposição política ao regime da ultradireita tem sido, com raras exceções, puro arremedo. A chamada esquerda parlamentar, de carreira, pouco ou nada tem feito para expor as entranhas do golpismo e enfrentá-lo em defesa da classe trabalhadora, duramente golpeada. Desde o golpe, as forças reacionárias no Congresso aprovaram, sem nenhuma dificuldade e, quase sem oposição, a PEC 95, que limita os gastos públicos com, por exemplo, saúde, educação e pesquisa; a Reforma Trabalhista, praticamente rasgou a CLT e, o maior e mais grave ataque, sobretudo pela completa inércia daqueles partidos e das centrais sindicais ligadas a eles, que sequer chamaram atos de rua, a Reforma da Previdência. Ela deslocou volume monstruoso de capital para os bancos, em especial os privados, enquanto os/as trabalhadores/as são forçados a morrer trabalhando.
Essa dita esquerda, com raríssimas exceções, facilita e ajuda prolongar a vida do cambaleante governo Bolsonaro. Nem a onda de protestos virtuais e panelaços, das últimas semanas, parece ter acordado os/as líderes dos principais partidos da oposição boazinha – PT, PCdoB e PSOL, preocupados em não melindrar possíveis aliados, do centro ou da direita política, para as eleições municipais. Eleições que ninguém sabe se ocorrerão.
Mais recentemente, essa mesma esquerda tem se empenhado em aprovar as ditas medidas de socorro, “de guerra”, à economia, propostas pelo governo dos banqueiros e por lideranças parlamentares, igualmente ligadas ao grande capital financeiro. Em meados de março, sinal vermelho foi ligado com a confirmação dos primeiros casos de contaminação e morte por Covid-19, no Brasil. Perigo rapidamente minimizado por Jair Bolsonaro, que propôs não ser ela mais do que “uma gripezinha, pô”. Para tanto, tentou utilizar toda a máquina pública para forçar um ar de normalidade: saiu às ruas, cumprimentou apoiadores, viajou aos Estados Unidos (de onde, praticamente toda a comitiva voltou infectada), chamou cadeia de rádio e televisão, por mais de uma vez, para estimular as pessoas a ignorar o isolamento social, medida mundialmente aceita como forma de evitar/retardar infecções. Enfim, Bolsonaro, cada vez mais isolado, quase sem apoio, tenta com unhas e dentes evitar o inevitável: uma gigantesca crise econômica, de proporções imensuráveis, num país em franca desindustrialização, fortemente dependente do agronegócio e do setor de serviços.
Nesse contexto que conjuga crise sanitária e econômica, que registra fratura importante no âmago bolsonarista, quem tem dado as cartas e feito evoluir a pauta de interesse do Capital é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do centrão fisiológico, numa espécie de bonapartismo parlamentar. Sob o pretexto de proteção da economia e dos setores mais empobrecidos, o parlamento brasileiro, com apoio unânime da esquerda social democrata, tem votado propostas de “socorro” ao mercado financeiro. As medidas econômicas paliativas do governo Bolsonaro, anunciadas desde a metade de abril, foram, no geral criticadas, não só pela sociedade, mas pelo Congresso, que exigiu a liberação de mais recursos. Os setores da esquerda, sem aprofundar o problema, preferiram a crítica superficial às medidas. Nem sequer levantaram o debate sobre a revogação da emenda 95, sobre a taxação de grandes fortunas – realidade conhecida em diversos países - e, muito menos, sobre a necessidade de interromper a sangria representada pelo pagamento da dívida pública.
A esquerda parlamentar brasileira comemorou, como se fosse uma enorme conquista, a aprovação, na última semana de março, de auxílio que varia de R$600 a R$1.200, para trabalhadores autônomos e informais. Não há margem para dúvida de que aquele valor é lenitivo para quem não tem perspectiva de renda, no entanto, o que se espera é a geração de empregos e não socorro emergencial, além disso houve profundo silêncio parlamentar quanto à Medida Provisória que autorizou empresários a reduzir jornada de trabalho e salários dos/as trabalhadores/as. Talvez o anúncio do governo de arcar com até 70% dos salários, aliviando os patrões, tenha satisfeito os sociais democratas. Silêncio também no anúncio do governo de aumento da liquidez do mercado (dinheiro para os bancos), mediante a compra de títulos, no valor de cerca de 160 bilhões de reais.
A cereja do bolo desta farra com o dinheiro do povo brasileiro, para enriquecer ainda mais os setores do capital financeiro, foi a aprovação, em dois turnos, numa agilidade nunca vista na Câmara, da PEC do Orçamento de Guerra. Por 505 votos a favor e 2 contra no primeiro turno e, por 423 a 1, no segundo, a PEC dá quase liberdade irrestrita, ainda que vigiada, para o governo gastar na crise, mas não com o trabalhador, isso, a equipe econômica de Bolsonaro, descarta. Entre outras coisas, o texto cria um Comitê de Gestão de Crise, presidido por Bolsonaro e com representantes de estados e municípios. É um cheque em branco para um governo irresponsável. Como se solucionar crise fosse algo que o governo soubesse realizar. Além disso, a PEC também dá amplos poderes ao Banco Central para “enfrentar instabilidades no mercado financeiro” durante a crise sanitária, como vender e comprar títulos públicos e privados, para o delírio do grande capital.
Isso tudo, com total apoio da esquerda parlamentar. E, se não bastasse, ajudaram a aprovar a aceleração da tramitação do Plano Mansueto, de proposição governamental, para “socorrer” estados e municípios com dificuldades financeiras. Tal plano, uma vez aderido pelo ente da federação, exige contrapartidas que constituem verdadeiro crime de lesa pátria, com privatizações de setores fundamentais, como energia e saneamento básico.
Esse processo tem servido para mostrar mais uma vez que em épocas de grave crise, a esquerda burguesa afasta-se ainda mais da classe trabalhadora, guerreando lado a lado com o opressor. É fato que vivemos uma guerra, mas não é contra os efeitos do terrível vírus, mas aquela, há muito travada, a do Capital contra o Trabalho. É uma guerra, que para os setores do campo progressista e da esquerda vencerem, precisam mais do que da aparência de esquerda. O velho Marx já propunha que a emancipação da classe trabalhadora se dará pela própria classe trabalhadora, para isso, o partido, o sindicato, ou seja, qual for a organização proletária precisa ser controlada por trabalhadores/as e não por dirigentes de aparência trabalhadora, mas de essência burguesa!
[1] Historiador e professor da rede pública, no Rio Grande do Sul. Membro do grupo de estudos Marxistas, Fronteira Vermelha.
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